Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.
Núñez de Balboa, 56
28001 Madrid
A violoncelista
Título original: The Cellist
© 2021, Daniel Silva
© 2022, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.
Publicado originalmente pela HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.
Tradutor: Filipa Velosa
Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.
Esta edição foi publicada com a autorização da HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.
Desenho da capa: Darren Holt, HarperCollins Design Studio
Imagem da capa: Shutterstock.com
ISBN: 978-84-9139-780-9
Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.
Sumário
Créditos
Primeira Parte. Moderato
1. Jermyn Street, St. James
2. Cheyne Walk, Chelsea
3. Londres
4. Hospital de St. Thomas, Lambeth
5. Nahalal, Israel
6. Queen’s Gate Terrace, Kensington
7. Eaton Square, Belgravia
8. Londres–Norwich
9. Bishopgate, Norwich
10. Aeroporto de London City–Amesterdão
11. Museu van Gogh, Amesterdão
12. Wormwood Cottage, Dartmoor
13. Wormwood Cottage, Dartmoor
14. Berna
15. Quartel-General do Ndb, Berna
16. Zurique
17. Erlenbach, Suíça
18. Römerhofplatz, Zurique
19. Erlenbach, Suíça
20. Erlenbach, Suíça
Segunda Parte. Menuetto & Trio
21. Zurique–Vale De Jezreel
22. Alta Galileia, Israel
23. Alta Galileia, Israel
24. Alta Galileia, Israel
25. Tiberíades, Israel
26. Avenida Rei Saul, Telavive
27. Genebra
28. Talackerstrasse, Zurique
29. Kensington, Londres
30. Genebra–Zurique
31. Rosenbühlweg, Zurique
32. Londres–Zurique
33. Kunsthaus, Zurique
34. Kunsthaus, Zurique
35. Quai du Mont-Blanc, Genebra
36. Quai du Mont-Blanc, Genebra
37. Genebra–Paris
38. Île Saint-Louis, Paris
39. Féchy, Cantão de Vaud
40. Féchy, Cantão de Vaud
Terceira Parte. Adagio Cantabile
41. Genebra–Londres
42. Quai du Mont-Blanc, Genebra
43. Telavive–Langley, Virgínia
44. Genebra
45. Féchy, Cantão de Vaud
46. Genebra–Costa de Prata, Portugal
47. Costa de Prata, Portugal
48. Courchevel, França
49. Courchevel, França
50. Courchevel, França
51. Rue de Nogentil, Courchevel
52. Rue de Nogentil, Courchevel
53. Rue de Nogentil, Courchevel
54. Rue de Nogentil, Courchevel
55. Rue de Nogentil, Courchevel
56. Aeroporto de Chambéry, França
57. Maciço de Vanoise, França
Quarta Parte. Finale
58. Genebra–Londres–Telavive
59. Tzamarot Ayalon, Telavive
60. Narkiss Street, Jerusalém
61. Wilmington, Delaware
62. Wilmington, Delaware
63. Colina do Capitólio, Washington
64. Washington
Quinta Parte. Encore
65. Washington
66. Narkiss Street, Jerusalém
67. Mason’s Yard, St. James’s
Nota do autor
Agradecimentos
Se gostou deste livro…
Para os agentes da Polícia do Capitólio dos Estados Unidos
e do Departamento de Polícia Metropolitana de Washington que
defenderam a nossa democracia a 6 de janeiro de 2021.
E, como sempre, para a minha esposa, Jamie, e para os meus filhos, Lily e Nicholas.
Cleptocracia s.f. (1988) POL regime político-social em que práticas corruptas, esp. com o dinheiro público, são implicitamente admitidas ou mesmo consagradas ETIM clept(o)- + -cracia
DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA
Na Rússia, poder é riqueza e riqueza é poder.
ANDERS ÅSLUND, RUSSIA’S CRONY CAPITALISM
Sarah Bancroft invejava as almas afortunadas que acreditavam controlar os seus próprios destinos. Para elas, viver era tão simples como andar de metro. Validar o bilhete na porta de acesso, sair na paragem correta (Charing Cross, e não Leicester Square). Sarah nunca concordara com tal disparate. Sim, uma pessoa podia preparar-se, podia esforçar-se, podia fazer escolhas, mas, em última instância, a vida era um jogo complexo de providência e probabilidade. Infelizmente, tanto em questões de trabalho como de amor, ela revelara sempre uma espantosa falta de timing. Estava permanentemente um passo à frente ou um passo atrás. Perdera muitos comboios. Embarcara várias vezes no comboio errado, quase sempre com resultados desastrosos.
A sua mais recente decisão profissional parecia enquadrar-se neste malfadado padrão. Depois de se ter afirmado como uma das mais proeminentes curadoras de museus de Nova Iorque, optara por mudar-se para Londres para assumir a gestão quotidiana da Isherwood Fine Arts, que comercializava quadros de Grandes Mestres italianos e holandeses desde 1968. Como seria de esperar, pouco depois da sua chegada, deu-se a deflagração de uma pandemia mortal. Nem mesmo o mundo da arte, que satisfazia os caprichos dos super-ricos globais, ficara imune à devastação do contágio. Quase de um dia para o outro, o negócio da galeria caíra para algo que se assemelhava a uma paragem cardíaca. Nas raras ocasiões em que o telefone tocava, tratava-se, normalmente, de um comprador ou do seu representante a ligar para desistir de uma venda. Desde a versão musical de Desesperadamente Procurando Susana, no West End, que Londres não testemunhava uma estreia menos auspiciosa, declarou a amarga mãe de Sarah.
A Isherwood Fine Arts tinha atravessado períodos conturbados anteriormente (guerras, atentados terroristas, choques petrolíferos, colapsos do mercado, casos amorosos desastrosos), mas, de alguma forma, conseguira sempre fazer frente às tormentas. Quinze anos antes, Sarah trabalhara brevemente na galeria, servindo, simultaneamente, como agente clandestina da CIA. A operação fora uma empreitada conjunta entre americanos e israelitas, dirigida pelo lendário Gabriel Allon. Com a ajuda de um Van Gogh perdido, Gabriel infiltrara Sarah no círculo pessoal de um multimilionário saudita chamado Zizi al-Bakari, ordenando-lhe que descobrisse o génio terrorista escondido no seu interior. A partir desse momento, a sua vida jamais voltara a ser a mesma.
Após o final da operação, passou vários meses a recuperar numa casa segura da Agência, na região equestre da Virgínia do Norte. Depois disso, trabalhou no Centro Nacional de Antiterrorismo da CIA, em Langley. Também participou em várias operações conjuntas americano-israelitas, todas sob o comando de Gabriel. Os serviços secretos britânicos estavam bem cientes do passado de Sarah, bem como da sua presença em Londres. Dificilmente tal poderia considerar-se surpreendente, pois, hoje em dia, partilhava cama com um agente do MI6 chamado Christopher Keller. Num caso normal, uma relação como a deles seria estritamente proibida, mas, no de Sara, tinha sido aberta uma exceção. Graham Seymour, o diretor-geral do MI6, era seu amigo pessoal, tal como o primeiro-ministro britânico, Jonathan Lancaster. Na verdade, pouco depois da sua chegada a Londres, Sarah e Christopher tinham sido convidados para um jantar privado no número 10.
À exceção de Julian Isherwood, proprietário da galeria adorável que exibia o seu nome, os frequentadores do mundo artístico londrino desconheciam tudo isto. Para os colegas e concorrentes de Sarah, ela era a bonita e brilhante historiadora de arte americana que iluminara brevemente o seu mundo, num inverno sombrio e longínquo, para depois os abandonar por alguém como Zizi al-Bakari, paz à sua alma. E agora, após uma tumultuosa viagem pelo mundo secreto, Sarah regressara, provando assim o seu argumento sobre providência e probabilidade. Finalmente, apanhara o comboio certo.
Londres recebeu-a de braços abertos e com poucas perguntas. Mal teve tempo para pôr os seus assuntos em ordem, antes da invasão do vírus. Contraiu a doença no início de março, na European Fine Art Fair, em Maastricht, e infetou rapidamente tanto Julian como Christopher. Julian passou uma quinzena pavorosa no University College Hospital. Sarah foi poupada aos piores sintomas do vírus, mas suportou um mês de febre, fadiga, dores de cabeça e uma falta de ar que se apoderava dela sempre que rastejava para fora da cama. Sem surpresas, Christopher escapou incólume e assintomático. Sarah castigou-o, obrigando-o a atender a todas as suas necessidades. De alguma forma, a relação sobreviveu.
Em junho, Londres despertou do confinamento. Após ter testado negativo ao vírus três vezes, Christopher voltou ao serviço em Vauxhall Cross, mas Sarah e Julian esperaram até ao dia de São João para reabrirem a galeria. Esta situava-se num tranquilo pátio comercial pavimentado conhecido como Mason’s Yard, entre os escritórios de uma pequena empresa grega de transporte marítimo e um pub que, nos inocentes dias anteriores à praga, fora frequentado por meninas bonitas de escritório que conduziam scooters. No último andar, havia uma gloriosa sala de exposições, inspirada na famosa galeria de Paul Rosenberg em Paris, onde Julian fora muito feliz quando era criança. No primeiro andar, Julian e Sarah partilhavam um grande escritório com Ella, a atraente, mas inútil, rececionista. Durante a primeira semana de regresso ao trabalho, o telefone tocou apenas três vezes. Ella deixou as três chamadas irem para o atendedor. Sarah informou-a de que os seus serviços, se assim lhes quisermos chamar, já não eram necessários.
Não se justificava a contratação de um substituto. Os peritos tinham advertido sobre uma terrível segunda vaga, quando o tempo arrefecesse, e os lojistas de Londres tinham sido aconselhados a esperar a imposição de mais confinamentos por parte do governo. A última coisa de que Sarah necessitava era de mais uma boca para alimentar. Tomou a decisão de não desperdiçar o verão: venderia um quadro, qualquer quadro, fosse como fosse.
Encontrou um, de forma bastante acidental, quando fazia o inventário do catastroficamente elevado número de obras não vendidas, depositadas nos armazéns atulhados de Julian. A Tocadora de Alaúde, óleo sobre tela, 152 por 134 centímetros, talvez do início do Barroco, bastante danificado e sujo. O recibo e os registos de transporte originais ainda estavam guardados nos arquivos de Julian, juntamente com uma cópia amarelecida da proveniência. O seu primeiro proprietário conhecido era um Conde Fulano de Bolonha que, em 1698, o vendeu ao Príncipe Tal e Tal do Liechtenstein que, por sua vez, o vendeu ao Barão Qualquer Coisa de Viena, onde permaneceu até 1962, ano em que foi adquirido por um negociante de Roma que, finalmente, o vendeu a Julian. O quadro fora atribuído, em diferentes momentos, à Escola Italiana, a um discípulo de Caravaggio e, de forma mais promissora, ao círculo de Orazio Gentileschi. Sarah tinha um palpite. Mostrou a obra ao douto Niles Dunham, da National Gallery, durante o período de três horas que Julian reservava diariamente para o seu almoço. Niles aceitou, provisoriamente, a autoria atribuída por Sarah, até à realização de uma análise técnica adicional, com recurso a radiografia e reflectografia de infravermelho. Depois, ofereceu-se para lhe tirar o quadro das mãos por oitocentas mil libras.
— Vale cinco milhões, se não mais.
— Não durante a Peste Negra.
— Veremos.
Tipicamente, uma obra recém-descoberta de uma artista importante seria anunciada ao mercado com grande alarido, especialmente se a artista tivesse conhecido um súbito e recente incremento de popularidade devido à sua trágica história pessoal. No entanto, dada a atual volatilidade do mercado (para não mencionar o facto de o quadro recém-descoberto ter sido descoberto na sua própria galeria), Julian decidiu que seria mais adequado fazer uma venda privada. Telefonou a vários dos seus clientes mais fiáveis, mas não obteve o mínimo interesse de nenhum deles. Foi nesse ponto que Sarah contactou discretamente um colecionador multimilionário, que era amigo de um amigo. Este expressou interesse e, depois de várias reuniões com distância social, na sua residência em Londres, chegaram a um preço satisfatório. Sarah pediu um adiantamento de um milhão de libras, em parte para cobrir o custo do restauro, que seria profundo. O colecionador pediu-lhe que, às oito dessa noite, se dirigisse à sua residência para receber o cheque.
Tudo isto contribuía, de alguma forma, para explicar por que motivo, numa noite húmida de quarta-feira, Sarah Bancroft se encontrava sentada, numa mesa de canto, no bar do restaurante Wilton’s, na Jermyn Street. O humor na sala era incerto, os sorrisos forçados, as gargalhadas tumultuosas, mas, de algum modo, falsas. Julian estava encostado ao fundo do bar. Com o seu fato Savile Row e abundantes caracóis grisalhos, projetava uma imagem bastante elegante, embora duvidosa, um estilo que descrevia como de depravação digna. Espreitava para dentro do seu Sancerre e fingia ouvir algo que Jeremy Crabbe, o diretor do departamento de Grandes Mestres da Bonhams, murmurava excitadamente ao seu ouvido. Amelia March, da ARTNews, estava a tentar escutar uma conversa entre Simon Mendenhall, o leiloeiro chefe da Christie’s que se parecia a um manequim, e Nicky Lovegrove, conselheira artística dos criminosamente ricos. Roddy Hutchinson, amplamente considerado como o mais inescrupuloso negociante de toda a cidade de Londres, estava a puxar a manga do anafado Oliver Dimbleby. Mas Oliver parecia não reparar, pois estava a importunar a impossivelmente bonita ex-modelo que, agora, detinha uma bem-sucedida galeria de arte moderna na King Street. A caminho da porta, esta deu um beijo decoroso a Sarah, com aqueles seus lábios carmim perfeitos. Sarah bebericou o seu martíni com três azeitonas e murmurou:
— Cabra.
— Eu ouvi isso! — Felizmente, era apenas Oliver. Envolto num fato cinzento de corte ajustado, flutuou na direção da mesa de Sarah como um balão barragem e sentou-se. — O que é que tens contra a encantadora menina Watson?
— Os olhos. As maçãs do rosto. O cabelo. As mamas. — Sarah suspirou. — Queres que continue?
Oliver agitou a sua mãozinha rechonchuda, com um gesto desdenhoso.
— És muito mais bonita do que ela, Sarah. Nunca me vou esquecer da primeira vez que te vi a atravessar Mason’s Yard. O meu coração quase parou. Na altura, se bem me lembro, fiz uma enorme figura de parvo.
— Pediste-me em casamento. Várias vezes, na verdade.
— A minha proposta ainda se mantém.
— Sinto-me lisonjeada, Ollie. Mas receio que esteja fora de questão.
— Sou demasiado velho?
— Não, de todo.
— Demasiado gordo?
Ela beliscou o seu pómulo rosado.
— Na verdade, és perfeito.
— Então, qual é o problema?
— Estou envolvida.
— Em quê?
— Numa relação.
Oliver parecia não estar familiarizado com a palavra. Os seus envolvimentos românticos raramente duravam mais do que uma ou duas noites.
— Estás a falar daquele tipo que conduz o Bentley vistoso?
Sarah deu um gole na sua bebida.
— Como é que se chama esse teu namorado?
— Peter Marlowe.
— Parece um nome inventado.
Justificadamente, pensou Sarah.
— O que é que ele faz na vida? — soltou Oliver.
— Consegues guardar um segredo?
— Minha querida Sarah, tenho mais segredos sujos armazenados na minha cabeça do que o MI5 e o MI6 juntos.
Ela inclinou-se para o outro lado da mesa.
— É um assassino profissional.
— A sério? É um trabalho interessante, não?
Sarah sorriu. Não era verdade, evidentemente. Há vários anos que Christopher não trabalhava como assassino a soldo.
— Foi ele a razão do teu regresso a Londres? — sondou Oliver.
— Foi uma das razões. A verdade é que tive imensas saudades de todos vocês. Até de ti, Oliver. — Consultou a hora no telemóvel. — Oh, raios! Será que podes ser um querido e pagar a minha bebida? Estou atrasada.
— Para quê?
— Porta-te bem, Ollie.
— E por que raio é que eu havia de fazer isso? É tão profundamente aborrecido.
Sarah ergueu-se e, piscando um olho a Julian, saiu para a Jermyn Street. Subitamente, a chuva caía torrencialmente, mas um táxi veio prontamente em seu socorro. Esperou até estar a salvo no interior para dar a morada de destino ao motorista.
— Cheyne Walk, por favor. Número quarenta e três.
Tal como Sarah Bancroft, Viktor Orlov acreditava que a vida era uma viagem que se fazia melhor sem o auxílio de um mapa. Criado em Moscovo, num apartamento sem aquecimento partilhado por três famílias, tornou-se multimilionário através de uma combinação de sorte, determinação e táticas impiedosas que até os seus apologistas descreviam como inescrupulosas, se não criminosas. Orlov não escondia que era um predador e um barão ladrão. Na verdade, ostentava orgulhosamente esses títulos.
— Se tivesse nascido inglês, o dinheiro poderia ter-me chegado às mãos de forma limpa — disse, desdenhosamente, a um entrevistador britânico, depois de estabelecer residência em Londres —, mas nasci russo. E amealhei uma fortuna ao estilo russo.
Na realidade, Viktor Orlov não nascera na Rússia, mas sim na União Soviética. Matemático brilhante, frequentara o prestigiado Instituto de Mecânica e Ótica de Precisão de Leninegrado e, depois, desaparecera no interior do programa soviético de armas nucleares, onde desenhara mísseis balísticos intercontinentais de ogivas múltiplas. Mais tarde, quando lhe perguntaram por que motivo se filiara no Partido Comunista, admitiu que fora, apenas, para progredir na carreira.
— Suponho que pudesse ter-me tornado um dissente — acrescentou —, mas o gulag nunca me pareceu um lugar muito convidativo.
Como membro da elite privilegiada, Orlov testemunhou o declínio do sistema soviético a partir de dentro e percebeu que era apenas uma questão de tempo até que o império colapsasse. Quando o fim finalmente chegou, renegou a filiação no Partido Comunista e jurou tornar-se rico. No prazo de poucos anos, ganhou uma considerável fortuna com a importação de computadores e outros bens ocidentais para o emergente mercado russo. Depois, usou essa fortuna para adquirir a maior empresa siderúrgica estatal russa e a Ruzoil, a gigante petrolífera siberiana. Pouco tempo depois, Orlov era o homem mais rico da Rússia.
No entanto, na Rússia pós-soviética, um território sem Estado de direito, a fortuna de Orlov fez dele um homem com um alvo nas costas. Sobreviveu a, pelo menos, três atentados e houve rumores de que ordenou a morte de vários homens como retaliação. Mas a maior ameaça a Orlov viria de um homem que sucedera a Boris Yeltsin como presidente. Este acreditava que Viktor Orlov e os outros oligarcas tinham pilhado os bens mais valiosos do país e a sua intenção era recuperá-los. Depois de se instalar no Kremlin, o novo presidente convocou Orlov e exigiu duas coisas: a sua empresa siderúrgica e a Ruzoil.
— E não meta o nariz em política — acrescentou de modo ameaçador. — Caso contrário, mando cortá-lo.
Orlov concordou em renunciar à sua participação no mercado siderúrgico, mas não à Ruzoil. O presidente não achou graça. Ordenou imediatamente ao Ministério Público que iniciasse uma investigação por fraude e corrupção e, uma semana depois, foi emitido um mandado para a detenção de Orlov. Sensatamente, Orlov fugiu para Londres, onde se tornou um dos mais veementes críticos do presidente russo. Durante vários anos, a Ruzoil manteve-se legalmente congelada, fora do alcance quer de Orlov, quer dos novos líderes do Kremlin. Por fim, Orlov aceitou entregar a empresa, em troca de três agentes secretos israelitas, mantidos em cativeiro na Rússia. Um dos agentes era Gabriel Allon.
Pela sua generosidade, Orlov recebeu um passaporte britânico e um encontro privado com a rainha no Palácio de Buckingham. Depois, embarcou num esforço ambicioso para reconstruir a fortuna perdida, desta vez sob o olhar atento das entidades reguladoras britânicas, que monitorizavam todos os seus negócios e investimentos. O seu império incluía, agora, jornais londrinos tão veneráveis como o Independent, o Evening Standard e o Financial Journal. Também adquirira uma participação de controlo no semanário de investigação russo Moskovskaya Gazeta. Com o apoio financeiro de Orlov, a revista era, novamente, uma das mais proeminentes organizações noticiosas independentes da Rússia e um espinho cravado no flanco dos homens do Kremlin.
Consequentemente, Orlov vivia cada dia com o conhecimento de que os formidáveis serviços secretos da Federação Russa conspiravam para o assassinar. A sua nova limusina Mercedes-Maybach estava equipada com funcionalidades de segurança normalmente reservadas para os veículos de Estado de presidentes e primeiros-ministros e a sua casa na histórica Cheyne Walk, em Chelsea, era uma das mais fortemente protegidas de Londres. Estacionado junto do passeio, havia um Range Rover preto, com os faróis apagados. No interior, estavam quatro guarda-costas, todos ex-comandos da força de elite do Serviço Aéreo Especial, contratados por uma discreta empresa de segurança sediada em Mayfair. O que estava ao volante ergueu uma mão em sinal de reconhecimento, enquanto Sarah saía da parte de trás do táxi. Evidentemente, era esperada.
O número 43 era um prédio alto e estreito, coberto de glicínias. Tal como os edifícios vizinhos, estava afastado da rua, atrás de uma grade de ferro forjado. Sarah apressou-se a subir o caminho que atravessava o jardim, debaixo do parco abrigo proporcionado pelo seu guarda-chuva compacto. A pressão do seu dedo sobre o botão da campainha produziu um toque ressonante no interior, mas nenhuma resposta. Sarah premiu o botão uma segunda vez, com o mesmo resultado.
Normalmente, uma empregada doméstica teria aberto a porta, mas Viktor, que já antes da pandemia sentia uma notória fobia aos germes, cortara as horas do pessoal doméstico para reduzir a probabilidade de contrair o vírus. Solteiro empedernido, passava a maioria das noites no seu escritório, no segundo andar, às vezes sozinho, outras tantas vezes com companhia feminina escandalosamente jovem. As cortinas cintilavam à luz de um candeeiro. Sarah calculou que estivesse a atender numa chamada. Pelo menos, era o que esperava.
Tocou à campainha uma terceira vez e, não recebendo resposta, colocou o dedo indicador no leitor biométrico junto da porta. Viktor adicionara a sua impressão digital ao sistema, indubitavelmente na esperança de que a sua relação pudesse continuar após a conclusão da venda do quadro. Um chilreio eletrónico informou Sarah de que a leitura fora aceite. Introduziu o seu código de acesso pessoal (era idêntico ao que usava na galeria) e os trincos da fechadura abriram-se de imediato com um estalido.
Fechou o guarda-chuva, rodou a maçaneta da porta e entrou. O silêncio era absoluto. Chamou o nome de Viktor, mas não houve qualquer resposta. Atravessando o hall de entrada, subiu a escadaria nobre chegando ao segundo andar. A porta do escritório de Viktor estava entreaberta. Sarah bateu. Não houve resposta.
Chamando o nome de Viktor, entrou na divisão. Era uma réplica exata do escritório particular da rainha, no apartamento do Palácio de Buckingham, à exceção do painel de vídeo de alta-definição que tremeluzia com noticiários financeiros e dados de mercado de todo o mundo. Viktor estava sentado à secretária, com o rosto virado para o teto, como se estivesse absorto nos seus pensamentos.
Quando Sarah se aproximou da secretária, ele não esboçou qualquer movimento. À sua frente, estava o auscultador do telefone fixo, um copo de vinho tinto meio bebido e uma pilha de documentos. A sua boca e queixo estavam cobertos de espuma branca e havia vómito na parte de frente da sua camisa às riscas. Sarah não viu indícios de respiração.
— Oh, Viktor. Meu Deus!
Na CIA, Sarah trabalhara em casos que envolviam armas de destruição maciça. Reconhecia os sintomas. Viktor fora exposto a um agente nervoso.
Muito provavelmente, Sarah também.
Com a mão na boca, correu para o exterior da divisão e apressou-se a descer a escadaria. O portão de ferro forjado, o botão da campainha, o leitor biométrico, o teclado: qualquer um deles poderia ter sido contaminado. Os agentes nervosos tinham uma atuação extremamente rápida, pelo que iria saber dali a um ou dois minutos.
Sarah tocou numa última superfície, a maçaneta da porta blindada da casa de Viktor. Lá fora, ergueu o rosto para a chuva que caía e esperou pelo primeiro ataque de náuseas revelador. Um dos guarda-costas saiu do Range Rover na sua direção, mas Sarah advertiu-o para que não se aproximasse mais. Depois, retirou o telefone da mala e marcou um número dos seus contactos preferidos. A chamada foi diretamente para a caixa do correio. Como era habitual, pensou ela, a sua falta de timing era impecável.
— Perdoa-me, meu amor — disse calmamente —, mas receio que talvez esteja a morrer.
Entre as inúmeras questões sem resposta que rodeavam os acontecimentos daquela noite, estava a identidade do homem que telefonou para a linha de emergência da Polícia Metropolitana. Uma gravação automática da chamada revelou que falava inglês com um forte sotaque francês. Mais tarde, os peritos linguísticos determinariam que, muito provavelmente, se tratava de alguém do Sul, embora um deles tenha sugerido que era, presumivelmente, natural da ilha de Córsega. Quando instado a declarar o seu nome, interrompeu abruptamente a ligação. Nunca se conseguiu determinar o número do seu aparelho móvel, que não deixou rasto de quaisquer metadados.
As primeiras unidades chegaram ao local (o número 43 da Cheyne Walk, em Chelsea, numa das zonas mais chiques de Londres) apenas quatro minutos depois. Aí, foram saudados por uma visão verdadeiramente singular. No caminho que conduzia à elegante moradia de tijolo, havia uma mulher, de pé, a alguns passos da porta de entrada aberta. Na mão direita, tinha um telemóvel. Com a esquerda, esfregava furiosamente o rosto, que estava erguido na direção da chuva torrencial. Quatro homens de constituição robusta, de fatos escuros, observavam-na do outro lado da grade de ferro forjado, como se fosse uma louca.
Quando um dos agentes tentou aproximar-se, gritou-lhe que parasse. Depois, explicou que o dono da casa, o financeiro e editor nascido na Rússia, Viktor Orlov, fora assassinado com um agente nervoso, muito provavelmente de origem russa. A mulher estava convencida de que fora igualmente exposta à toxina, daí a sua aparência e comportamento. O seu sotaque era americano e evidenciava um domínio minucioso do léxico relacionado com armas químicas. Os agentes supuseram que tinha experiência em matéria de segurança, uma opinião reforçada pela sua recusa em identificar-se ou em explicar porque viera a casa do senhor Orlov nessa noite.
Passaram mais sete minutos, antes que as equipas de defesa QBRN[1] entrassem na casa. No escritório do andar superior, encontraram o multimilionário russo sentado à secretária, com as pupilas contraídas, saliva no queixo e vómito na camisa, tudo sinais de exposição a um agente nervoso. As equipas médicas não fizeram qualquer tentativa de reanimação. Aparentemente, Orlov estava morto há uma hora ou mais, provavelmente como resultado de asfixia ou paragem cardíaca causada por uma perda de controlo dos músculos respiratórios do corpo. As análises preliminares da divisão encontraram contaminação no computador, no pé do copo de vinho e no auscultador do telefone. Não havia indícios de contaminação em qualquer outra superfície, incluindo a porta de entrada, o botão da campainha ou o leitor biométrico.
Isto sugeria aos investigadores que o agente nervoso fora introduzido diretamente no escritório de Orlov por um intruso ou por um visitante. A equipa de segurança do multimilionário disse à polícia que ele recebera duas visitas nessa noite, ambas mulheres. Uma era a americana que descobrira o corpo. A outra era uma russa (pelo menos, fora essa a suposição do destacamento de segurança). A mulher não se identificou e Orlov não lhes forneceu um nome. Nenhuma dessas coisas era invulgar, explicaram. Orlov era reservado por natureza, principalmente a respeito da sua vida privada. Cumprimentou calorosamente a mulher à porta (todo ele sorrisos e beijos ao estilo russo) e acompanhou-a até ao escritório no andar superior, onde puxou as cortinas. Ela ficou cerca de quinze minutos e saiu sozinha, o que também não era invulgar no que tocava a Orlov.
Eram quase dez da noite quando o agente superior no local relatou as suas primeiras conclusões à New Scotland Yard. O supervisor de turno ligou à comissária da Polícia Metropolitana, Stella McEwan, e, por sua vez, McEwan contactou o ministro do Interior, que alertou Downing Street. A chamada foi desnecessária, pois o primeiro-ministro Lancaster já estava a par da crise que estava a desenrolar-se; fora informado, quinze minutos antes por Graham Seymour, o diretor-geral do MI6. O primeiro-ministro reagira às notícias com uma fúria justificada. Pela segunda vez em apenas dezoito meses, os russos pareciam ter executado um assassinato no coração de Londres, utilizando uma arma de destruição maciça. Os dois ataques tinham, pelo menos, um elemento em comum: o nome da mulher que descobriu o corpo de Orlov.
— Que diabos é que ela estava a fazer na casa do Viktor?
— Um negócio de arte — explicou Seymour.
— Temos a certeza de que é só isso?
— Primeiro-ministro?
— Ela não está a trabalhar novamente para o Allon, pois não?
Seymour assegurou a Lancaster que não estava.
— Onde é que ela está agora?
— No Hospital de St. Thomas.
— Foi exposta ao gás?
— Saberemos em breve. Entretanto, é imperativo que mantenhamos o nome dela afastado da imprensa.
Visto tratar-se de um incidente doméstico, os rivais de Seymour no MI5 assumiram a responsabilidade principal pela investigação, focando-se na primeira das duas visitas de Orlov. Com a ajuda das câmaras de videovigilância de Londres, a Polícia Metropolitana já determinara que ela aparecera na casa de Orlov, de táxi, às 18h19. Uma análise adicional de outros vídeos estabeleceu que embarcara no mesmo táxi, quarenta minutos antes, no Terminal 5 do Aeroporto de Heathrow, depois de chegar de Zurique num voo da British Airways. O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras identificou-a como Nina Antonova, quarenta e dois anos, uma cidadã da Federação Russa com residência na Suíça.
Uma vez que o Reino Unido já não exigia aos passageiros que chegavam o preenchimento de um registo de desembarque em papel, a sua profissão não foi imediatamente evidente. Contudo, uma simples pesquisa na Internet revelou que Nina Antonova trabalhava como jornalista de investigação para a Moskovskaya Gazeta, o semanário antikremlin cujo proprietário era nada mais nada menos do que Viktor Orlov. Fugira da Rússia em 2014, depois de sobreviver a uma tentativa de assassinato. Enquanto correspondente em Zurique, expusera diversos exemplos de corrupção que envolviam membros do círculo íntimo do presidente russo. Autoproclamada dissidente, aparecia regularmente na televisão suíça como comentadora de atualidade russa.
Não era o currículo de uma típica assassina de Moscovo Centro. Ainda assim, dado o historial do Kremlin, isso dificilmente estava fora de questão. Seguramente, um interrogatório policial estava garantido, e quanto mais depressa melhor. De acordo com as câmaras de videovigilância, abandonou a residência de Orlov às 18h35 e encaminhou-se, a pé, para o Hotel Cadogan, na Sloane Street. Sim, confirmou a rececionista, uma Nina Antonova fizera o check-in um pouco mais cedo, nessa mesma noite. Não, nesse momento não estava no quarto. Deixara o hotel às sete e um quarto, aparentemente para um compromisso para jantar, e ainda não regressara.
As câmaras de segurança do hotel tinham registado a sua partida. Com uma expressão grave, entrara para a parte de trás de um táxi, que fora chamado por um porteiro de gabardina. O carro não a deixara num restaurante, mas sim no Aeroporto de Heathrow, onde, às 21h45, embarcara num voo da British Airways para Amesterdão. Uma chamada para o seu telemóvel (a Polícia Metropolitana obteve o número pelo formulário de registo do hotel) não obteve resposta. Foi nesse momento que Nina Antonova se tornou na principal suspeita da morte do financeiro e editor de imprensa russo, Viktor Orlov.
Numa última humilhação, foi Samantha Cooke, do rival Telegraph, que noticiou a história do assassinato de Orlov, embora o seu relato contivesse poucos pormenores. Durante a sua comparência perante os jornalistas à porta do número 10, o primeiro-ministro Lancaster confirmou que o multimilionário fora morto com uma toxina química ainda por identificar, quase certamente de fabrico russo. Não fez qualquer menção aos documentos descobertos em cima da secretária de Orlov nem às duas mulheres que o tinham visitado na noite do crime. Uma delas parecia ter desaparecido sem deixar rasto. A outra descansava confortavelmente no Hospital de St. Thomas. Pelo menos por isso, o primeiro-ministro estava profundamente grato.
Quando chegou, estava ensopada até aos ossos e a tremer de frio. A equipa dos cuidados intensivos não foi informada do seu nome nem da sua profissão, apenas da nacionalidade e idade aproximada. Tiraram-lhe as roupas encharcadas, colocaram-nas num saco carmim para resíduos biológicos perigosos e deram-lhe uma bata e uma máscara para usar. As suas pupilas estavam responsivas, as vias nasais desobstruídas. O ritmo cardíaco e a respiração estavam acelerados. Sentia náuseas? Não. Dor de cabeça? Um pouco, admitiu, mas, provavelmente, devia-se ao martíni que bebera no início dessa noite. Não disse onde.
O seu estado sugeria que sobrevivera incólume à exposição ao agente nervoso. Contudo, como salvaguarda contra a possibilidade de um aparecimento tardio de sintomas, foram-lhe receitados atropina e cloreto de pralidoxima, ambos administrados por via intravenosa. A atropina secou-lhe a boca e turvou-lhe a visão, mas, à exceção disso, não teve efeitos secundários graves.
Após mais quatro horas de observação, conduziram-na, em cadeira de todas, até um andar superior com vista para o Tamisa. Eram quase quatro da manhã quando adormeceu. A sua agitação assustou os enfermeiros da noite (contrações musculares eram um sintoma de envenenamento por agente nervoso), mas foi apenas um pesadelo, pobre mulher. Dois agentes da Polícia Metropolitana fardados vigiavam o exterior da sua porta, bem como um homem que envergava um fato escuro e usava um transmissor auricular. Mais tarde, a administração do hospital negaria o rumor, que se espalhara entre o pessoal como um vírus, de que o agente pertencia à divisão da Polícia Metropolitana responsável pela proteção da família real e do primeiro-ministro.
Eram quase dez da manhã, quando a mulher acordou. Depois de tomar um pequeno-almoço leve, composto por café e uma torrada, foi submetida a um novo check-up. Pupilas responsivas, vias nasais desobstruídas. Ritmo cardíaco, respiração e tensão arterial normais. Aparentemente, disse o médico, estava fora de perigo.
— Isso quer dizer que me posso ir embora?
— Ainda não.
— Quando então?
— Nunca antes do final da tarde.
Ficou claramente desiludida, mas aceitou o seu destino sem proferir uma única palavra de protesto. Os enfermeiros fizeram os possíveis por mantê-la confortável, mas todas as tentativas para estabelecerem um diálogo com ela para além do tema do seu estado de saúde foram habilmente rejeitadas. Passou a maior parte do dia a ver a cobertura noticiosa do assassinato do multimilionário russo na televisão. Aparentemente, estivera envolvida, de alguma forma, mas Downing Street parecia estar determinada a manter o seu papel em segredo. A equipa clínica fora avisada de que não deveria filtrar uma única palavra à imprensa.
Pouco depois das cinco da tarde, recebeu uma chamada no telefone do quarto. Em linha, estava o número 10 (o mesmíssimo primeiro-ministro, de acordo com uma das operadoras, que jurou ter ouvido a sua voz). Alguns minutos depois do final da conversa, um homem de aspeto pueril, com o comportamento de um pároco da aldeia, apareceu com uma muda de roupa e um saco de artigos de higiene pessoal. Escreveu algo ilegível no registo de visitas e aguardou no corredor com os agentes da polícia, enquanto a mulher tomava um duche e se vestia. Depois do check-up final, que ela passou com distinção, os médicos deram-lhe alta. O homem de aspeto pueril apoderou-se prontamente do formulário e instruiu a enfermeira-chefe para que apagasse a ficha da mulher do sistema informático. Passado um momento, tanto a ficha como a mulher tinham desaparecido.
[1] Química, Biológica, Radiológica ou Nuclear. (N.T)
Um Bentley Continental prateado aguardava no exterior da entrada principal do hospital e o condutor estava encostado ao capô com indiferença. Envergava uma gabardina Burberry, com corte Camden, sobre um fato Savile Row de Richard Anderson, com uma única fila de botões. Tinha o cabelo amarelado pelo sol e os olhos azul-claros. Sarah baixou a máscara e deu-lhe um beijo na boca, que parecia esboçar permanentemente um sorriso irónico.
— Achas mesmo que isso é sensato? — perguntou Christopher.
— Muito. — Afagou, com a ponta do dedo indicador, a covinha do seu queixo robusto. A sua pele era lisa e escura. Os anos que passara nas montanhas da Córsega tinham-no deixado com a compleição de um mediterrânico. — Estás tão bonito que era capaz de te comer.
— Não te alimentaram, ali dentro?
— Não tinha grande apetite, depois de ter visto o Viktor assim. Mas vamos falar de qualquer coisa um pouco mais agradável.
— De quê, por exemplo?
— De todas as maldades que te vou fazer quando chegarmos a casa.
Sarah mordeu-lhe o lábio inferior e deslizou para o banco do passageiro do Bentley. Pouco depois de se ter mudado para Londres, sugerira que Christopher talvez quisesse vender o carro e comprar algo um pouco menos ostentoso, como um Volvo, de preferência um modelo de carrinha. Agora, acariciada pelo couro acolchoado, perguntava-se como podia ter sido tão disparatada. Um dos seus clássicos favoritos fluía do suave sistema de som. Acompanhou Chet Baker, enquanto atravessavam a Ponte de Westminster.
I fell in love just once, and then it had to be with you…[2]
O trânsito da hora de ponta estava agónico. Na margem oposta do Tamisa, os andaimes de construção tinham tornado a Elizabeth Tower invisível, alterando a linha do horizonte londrino. Até mesmo o famoso mostrador do relógio estava velado. Nada no mundo estava certo, pensou Sarah. Tudo se desmoronara.
Everything happens to me…[3]
— Não sabia que tinhas uma voz tão bonita — disse Christopher.
— Pensava que era suposto os espiões saberem mentir.
— Sou um agente secreto. Os espiões são as pessoas que seduzimos para traírem os seus países.
— Isso não altera o facto de eu ter a pior voz do mundo para cantar.
— Que disparate.
— É mesmo verdade. Quando estava na primeira classe, em Brearley, a minha professora escreveu uma longa dissertação na minha ficha de avaliação sobre a minha incapacidade para cantar uma melodia.
— Sabes o que dizem dos professores.
— A professora Hopper — disse Sarah desdenhosamente. — Felizmente, o meu pai foi transferido para Londres no ano seguinte. Matriculou-me na Escola Americana, no St. John’s Wood, e consegui pôr o episódio todo para trás das costas. — Olhou pela janela, para os passeios desertos da Birdcage Walk. — Eu e a minha mãe costumávamos dar longos passeios, quando vivíamos em Londres. Isso era quando ainda falávamos uma com a outra.
Os Marlboros de Christopher estavam pousados no painel central do carro, debaixo do seu isqueiro Dunhill dourado. Sarah hesitou e, depois, retirou um cigarro do maço.
— Se calhar, não devias.
— Não ouviste? Dizem que mata o coronavírus. — Sarah acendeu o isqueiro e encostou a ponta do cigarro à chama. — Podias ter ido visitar-me, sabias?
— O Serviço Nacional de Saúde proíbe todas as visitas a pacientes, exceto em situações terminais.
— Fui exposta a um agente nervoso russo. Uma situação terminal era uma clara possibilidade.
— Se queres mesmo saber, ofereci-me para vigiar a porta do teu quarto, mas o Graham nem quis ouvir falar disso. Já agora, ele manda-te cumprimentos.
Christopher ligou a Radio Four a tempo de ouvir o início do noticiário das seis. O assassinato de Viktor Orlov conseguira destronar a pandemia como notícia principal. O Kremlin negara qualquer papel no assunto, acusando os serviços secretos britânicos de conspirarem para desacreditar a Rússia. De acordo com a BBC, as autoridades britânicas ainda não tinham identificado a toxina usada para assassinar Orlov nem tinham determinado como é que a substância entrara na casa do multimilionário na Cheyne Walk.
— De certeza que tu sabes mais do que isso — disse Sarah.
— Muito mais.
— Que tipo de agente nervoso era?
— Receio que isso seja confidencial, querida.
— Eu também sou.
Christopher sorriu.
— É uma substância conhecida como Novichok. É…
— Uma arma binária desenvolvida pela União Soviética nos anos setenta. Os cientistas que a criaram alegaram que era cinco a oito vezes mais letal do que o VX, o que faria dela a arma mais letal alguma vez produzida.
— Já acabaste?
— Como é que os russos conseguiram introduzir o Novichok no escritório do Viktor?
— Os documentos que viste na secretária dele estavam cobertos de pó ultrafino de Novichok.
— Que documentos eram?
— Parecem ser algum tipo de registos financeiros.
— Como é que chegaram até lá?
— Ah, sim — disse Christopher. — É aí que as coisas se tornam interessantes.
— E têm a certeza absoluta — perguntou Sarah no final do relatório de Christopher — de que a mulher que esteve na casa do Viktor era, de facto, a Nina Antonova?
— Comparámos a fotografia de vigilância tirada em Heathrow com uma participação recente num programa televisivo. O software de reconhecimento facial determinou que era a mesma mulher. E o guarda-costas do Viktor diz que ele a cumprimentou como se fosse uma velha amiga.
— Uma velha amiga com um lote de documentos envenenados?
— Quando o Kremlin quer assassinar alguém, habitualmente é um conhecido ou um parceiro de negócios que adultera o champanhe. Pergunta ao príncipe herdeiro Abdullah, da Arábia Saudita.
— Não há nenhuma hipótese de isso acontecer. — Entraram na Sloane Square. A fachada escurecida do Royal Court Theatre deslizou pela janela de Sarah. — Então, qual é a tua teoria? A Nina Antonova, uma conhecida jornalista de investigação e declarada dissidente, foi recrutada pelos serviços secretos russos para assassinar o homem que, sozinho, salvou a revista dela?
— Eu disse recrutada?
— Escolhe tu a palavra.
Christopher conduziu o Bentley para a King’s Road.
— A opinião tanto de Vauxhall Cross como dos nossos colegas da Thames House é que a Nina Antonova é uma agente secreta russa que conseguiu introduzir-se na Moskovskaya Gazeta há anos e tem estado à espera da sua oportunidade.
— Como é que explicas a tentativa de assassinato que a forçou a deixar a Rússia?
— Um excelente truque do ofício de Moscovo Centro.
Sarah não descartou imediatamente a teoria.
— Há outra possibilidade, sabias?
— Qual é?
— Ela ter sido enganada para dar os documentos envenenados ao Viktor. Na verdade, dadas as circunstâncias peculiares da sua fuga de Londres, diria que é a explicação mais provável.
— Não há nada de peculiar na fuga dela. Desapareceu antes de sabermos, sequer, o nome dela.
— Porque é que ela fez o check-in num hotel, em vez de ir diretamente para o aeroporto? E porquê Amesterdão e não Moscovo?
— Não havia voos diretos para Moscovo, àquela hora. Presumimos que tenha voado para lá esta manhã, com um passaporte novo.
— Se assim fosse, provavelmente, neste momento, estaria morta. Francamente, fico surpreendida que tenha conseguido chegar viva a Heathrow.
Christopher virou para a Old Church Street e dirigiu-se para norte, entrando em Kensington.
— Pensava que os analistas da CIA estavam treinados para não tirar conclusões precipitadas.
— Se alguém está a tirar conclusões precipitadas são vocês e os vossos colegas do MI5. — Sarah contemplou as brasas do seu cigarro. — Quando entrei no escritório, o telefone do Viktor estava fora do descanso. Deve ter ligado a alguém antes de morrer.
— À Nina.
— Oh, não me digas?
— Ela estava no quarto do Cadogan. Abandonou o hotel alguns minutos depois.
— O GCHQ estava a monitorizar os telefones do Viktor?
— O governo britânico não escuta as comunicações de editores de imprensa proeminentes.
— O Viktor Orlov não era um editor normal.
— E é por isso que está morto — disse Christopher.
— De que é que achas que falaram?
— Se tivesse de adivinhar, diria que ele estava bastante zangado com a Nina por ela o ter envenenado.
Sarah franziu o sobrolho.
— Acreditas mesmo que um homem como o Viktor desperdiçaria os momentos finais da vida a repreender a sua assassina?
— Por que outro motivo é que lhe teria ligado, vinte minutos depois de ela sair da casa dele?
— Para avisar que ela seria a seguinte.
Christopher virou para a Queen’s Gate Terrace.
— És bastante boa, sabias?
— Para uma negociante de arte — observou Sarah.
— Uma negociante de arte com um passado interessante.
— Olha quem fala.
Christopher estacionou o Bentley no exterior de uma casa georgiana creme. Ele e Sarah dividiam o duplex que ocupava os dois primeiros andares. O último andar era propriedade de uma empresa fantasma com um nome vago, registada nas Ilhas Caimão. Quase cem mil imóveis britânicos de luxo, muitos deles em distritos elegantes de Londres como Kensington e Knightsbridge, tinham donos secretos. Nem mesmo o MI6 fora capaz de determinar a verdadeira identidade do vizinho ausente de Christopher.
Desligou o motor, mas hesitou antes de abrir a porta.
— Passa-se alguma coisa? — perguntou Sarah.
— Há uma luz na cozinha.
— Deves ter-te esquecido de a desligar, quando saíste de manhã.
— Não me esqueci. — Christopher levou a mão ao interior do seu blazer e sacou uma Walther PPK. — Espera aqui. É só um minuto.
[2] Só me apaixonei uma vez, e teve logo de ser por ti. (N.T.)
[3] Tudo me acontece a mim… (N.T.)