SAGA Egmont
Robin Hood
Translated by Monteiro Lobato
Original title: The merry adventures of Robin Hood
Original language: English
Os personagens e a linguagem usados nesta obra não refletem a opinião da editora. A obra é publicada enquanto documento histórico que descreve as percepções humanas vigentes no momento de sua escrita.
Cover image: Shutterstock
Copyright © 1883, 2021 SAGA Egmont
All rights reserved
ISBN: 9788726873269
1st ebook edition
Format: EPUB 3.0
No part of this publication may be reproduced, stored in a retrievial system, or transmitted, in any form or by any means without the prior written permission of the publisher, nor, be otherwise circulated in any form of binding or cover other than in which it is published and without a similar condition being imposed on the subsequent purchaser.
This work is republished as a historical document. It contains contemporary use of language.
www.sagaegmont.com
Saga is a subsidiary of Egmont. Egmont is Denmark’s largest media company and fully owned by the Egmont Foundation, which donates almost 13,4 million euros annually to children in difficult circumstances.
Capítulo I
Na velha Inglaterra do Rei Henrique II e seu filho Ricardo Coração de Leão os reis dispunham de florestas reservadas, onde só êles podiam caçar — e, sob pena de morte, ninguém mais. Eram tais florestas guardadas por homens de grande poder, o mesmo poder atribuído nas cidades aos xerifes e nas dioceses aos bispos.
Perto das cidades de Nottingham e Barnesdale estendia-se a Floresta de Barnesdale, a maior de tôdas as reservadas aos reis. Chamava-se Hugo Fitzooth o chefe dos seus guardas, casado e pai do pequeno Roberto, o futuro Robin Hood. Nascido em Lockesley, em 1160, era por isso, freqüentemente chamado Rob de Lockesley. Lindo rapaz, alegre e vivo, cujo maior prazer breve se tornou acompanhar o pai em suas excursões pelas matas. Deu-se ao esporte do tiro com flecha, logo que os bíceps lhe permitiram vergar a madeira do arco; durante as horas de reclusão que o inverno traz, seu gôsto era ouvir as histórias contadas pelo pai — histórias do intrépido Will, o Verde, famoso bandido que por muitos anos desafiou o poder do rei e comeu, com seus companheiros, quantos veados reais quis. Mas, histórias, só no inverno. Nas boas estações o gôsto de Robin era correr a mata de arco em punho.
Sua mãe suspirava ao ver o fulgor dos olhos de Robin quando ouvia as façanhas de Will. O desejo da boa mulher não era vê-lo em vida de aventuras; sim metido na Côrte ou na Igreja. Ensinou-lhe a ler, a escrever, a bem falar, a comportar-se como um gentil-homenzinho. Mas embora recebesse de boa graça aquelas lições, o amor do rapaz estava no arco, na liberdade de correr pela floresta. Companhia nenhuma lhe sabia mais que a das árvores silenciosas — ou murmure jantes, quando as agitava a brisa.
Dois companheiros encontrou Rob para tais correrias: um Will Gamewell, seu primo, morador perto de Nottingham, e Marian Fitzwalter, filha única do Conde de Huntington. O castelo dêste conde podia ser visto do alto das árvores mais altas da floresta, donde costumava Rob acenar para a amiguinha, marcando encontros. Rob não podia visitá-la no castelo: as duas famílias odiavam-se. Nas redondezas corria que o verdadeiro Conde de Huntington era Hugo Fitzooth, o qual fôra defraudado de suas terras por artimanhas de Fitzwalter, companheiro de aventuras do Rei Ricardo na cruzada contra os turcos da Terra Santa. Entre as duas crianças, porém, sempre reinara a maior camaradagem, pouco ligando êles a questões de família. Tinham como cenário para suas fugidas a amplidão da floresta, e era o mesmo o gôsto de ambos pelo gorjear das aves, pelo chiar das cigarras, pelo afiar das frondes.
Dias encantadores se passaram assim, mas tempo veio em que o céu daquela felicidade iria turvarse de nuvens. O pai de Rob tinha ainda dois inimigos perigosos: o magro xerife de Nottingham e o gordo Bispo de Hereford, lugar próximo. Tais e tantas intrigas fizeram ao rei êstes dois homens, que conseguiram a demissão de Hugo, do seu lugar de chefe dos guardas florestais. Por uma fria tarde de inverno, Hugo recebeu o golpe tramado pela intriga — e sem saber de que o acusavam foi levado para a prisão de Nottingham, mais a espôsa e o filho, rapazola por essa época já entrado nos dezenove anos. Mãe e filho lá ficaram uma noite só. Na manhã seguinte eram expulsos da prisão, com extrema dureza. Foram-se em procura do parente mais próximo, Jorge de Gamewell, que os acolheu bondosamente.
Mas o choque recebido, e a marcha para o cárcere dentro da noite gelada, foram demais para a saúde já débil da mãe de Rob. Caiu de cama. Em menos de dois meses fechava os olhos para sempre. Rob sentiu despedaçar-se-lhe o coração. E ainda sangrava da grande dor, quando lhe sobrevém segundo golpe: morre também seu pai. O infeliz finara-se na prisão, sem sequer saber de que seus inimigos o acusavam.
Dois anos transcorreram. Will, o primo de Rob, fôra para o colégio; o pai de Marian, sabedor dos encontros da menina com o rapaz, mandou-a para a Côrte da Rainha Eleanor. Rob viu-se completamente só. O bom parente Gamewell tratava-o bem, mas que poderia fazer para cicatrizar as feridas abertas em seu jovem coração! Vivia imerso em incurável tristeza, chorando a falta da mãe querida, do pai tão gentil, da namorada e da vida livre a que se habituara. Tomava do arco, acariciava-o, mas que fazer com êle ali, fora da floresta amada?
Certa manhã no almôço seu tio lhe disse:
— Tenho novas para ti Rob — e o bom parente ergueu o copo de cerveja que acabara de encher.
— Quais? indagou o rapaz curioso.
— Uma excelente ocasião para te mostrares bom atirador de arco e ganhares um prêmio. Vai abrir-se a feira de Nottingham e o xerife anuncia um concurso de tiro. Os mais bem colocados terão emprêgo junto aos guardas florestais, e o que conseguir o primeiro lugar receberá uma flecha de ouro — coisa inútil como arma, mas de valor como troféu. Que me dizes a isto, meu Rob? — concluiu Gamewell, erguendo de novo o copázio de cerveja.
Os olhos de Rob cintilaram.
— Maravilhoso! — exclamou. — Sempre desejei ardentemente medir-me com outros homens no tiro de arco, e ser colocado entre os guardas florestais sempre foi também o meu sonho secreto. Permite-me meu tio que eu tome parte no concurso?
— Pois decerto — respondeu Gamewell. Bem sei que tua mãe queria fazer de ti um homem da cidade; mas estou convencido que a única vida que te atrai é a vida livre das florestas. Ora, o certo neste mundo é cada qual seguir a sua vocação.
Rob agradeceu as boas palavras do tio, e a partir daquele momento começou a fazer os preparativos para a viagem a Nottingham. Seu arco de teixo necessitava nova corda e as flechas também podiam ser melhoradas.
Dias depois, pela manhã, viram-no a caminho de Nottingham, de arco na mão e um feixe de setas ao ombro. Belo rapagão que era, vestido, da cabeça aos pés, do bom pano verde de Lincoln, caminhava radiante, intumescido de esperanças, sem um só pensamento para a maldade dos homens. Não tinha inimigos, mas, ai! iria fazer um naquele mesmo dia. Ao atravessar a Floresta de Sherwood deu de chôfre com um grupo de guardas em merenda alegre à sombra dum carvalho. Tinham diante de si um alentado bôlo e várias malgas de cerveja.
Quando os olhos de Rob se cruzaram com os do chefe do bando, o rapaz sentiu nêle o inimigo. Era justamente o homem que usurpara o cargo de seu pai e fizera sua pobre mãe viajar sem conforto dentro da neve impiedosa. Mas nada teria havido naquele momento, se o mau homem, depois de ingerir um longo trago, não exclamasse:
— Por Deus! Eis aqui um arqueirozinho gentil. Para onde vais, meu menino, com êsse arco de dois vinténs e essas flechas de brinquedo? Para a feira de Nottingham? Ah! ah! ah!
Gargalhadas acolheram a ironia do chefe. Rob corou porque na realidade era bom atirador e sentia grande orgulho disso.
— Meu arco, disse êle, vale o seu; minhas flechas vão tão longe e certeiras como as de todos daqui: por isso não peço nem recebo lições.
— Mostra-nos a tua habilidade, menino. Se atingires no alvo que vou indicar, receberás estas moedas de prata, e se errares, uma boa sova.
— Indique o alvo — gritou Rob já colérico. — Jogo minha cabeça contra essa bôlsa que tem aí na cintura.
— Assim seja, tornou o chefe dos guardas: tua cabeça contra a minha bôlsa.
Nesse momento um rebanho de veados repontou a pouca distância, uns cem metros. Veados do rei. O chefe apontou-os, dizendo para Rob:
— És capaz de lançar uma flecha a meia distância dos veados?
— Aposto minha cabeça contra vinte moedas que matarei aquêle acolá, o que vem na frente.
E sem acrescentar mais nada ajustou na corda uma seta e apontou. O arco encurvou-se elegantemente. A flecha partiu. Lá no rebanho o veado dianteiro deu um salto e caiu. A flecha atingira-o no coração.
Um murmúrio de espanto ergueu-se do grupo de guardas. E também um rugido de cólera.
— Sabes o que acabas de fazer, menino? — gritou o desapontado chefe. — Acabas de matar um cervo real, e portanto cometeste um crime contra as leis de Sua Majestade. Não me fales nas vinte moedas e raspa-te daqui quanto antes. Tua presença me irrita.
O sangue do rapaz esfervia-lhe nas veias. Encarou o mau homem a fito e rosnou:
— Já conheço essa cara, senhor chefe. Focinho dum homem que usa sapatos de defunto.
E com isso se afastou, com a alma a estalar de ódio.
0 chefe dos guardas respondeu com uma blasfêmia e, vencido pela cólera, correu ao arco; ajustou uma flecha, que traiçoeiramente remeteu contra o rapaz, pelas costas. Errou por fração de polegada.
Rob não se conteve. Voltou-se para o inimigo, gritando:
— Ah! Vejo que não atira bem como eu, apesar de tôdas as fanfarronadas. E bem merece uma lição dêste arco de dois vinténs.
Mal acabou de falar e já a flecha partiu. Um grito. O chefe dos guardas tombara de bôrco. Surpresos com o inesperado desenlace, os guardas rodearam o chefe, tentando reanimá-lo. Inútil. A seta fôra-lhe ao coração. O pai de Rob estava vingado. Os guardas arremeteram contra o matador.
Impossível alcançá-lo. Além da dianteira que levava, Rob tinha vinte anos e defendia a vida. Ao cair da tarde portou na cabana duma viúva para descanso. Sentia-se exausto e faminto. A boa mulher reconheceu nêle o menino que muitas vêzes lhe passara pela porta, com Will e Marian. Preparou-Ihe bolos e mais gulodices, insistindo para que se demorasse ali, e lhe contasse sua história. Depois meneou a cabeça desconsoladamente.
— Um mau vento sopra sôbre estas terras, gemeu. Os pobres são despojados de tudo; os ricos pisam sôbre seus corpos martirizados. Meus três filhos foram postos fora da lei por terem abatido um cervo real — meio único que tinham para escapar à morte pela fome. Andam agora ocultos na floresta, com mais quarenta homens igualmente perseguidos.
— Onde param êles, boa velhinha? indagou Rob. Por Deus que me quero juntar a êsses amigos.
A velha, desconfiada, evitou fornecer informação segura. Mas quando viu não haver outro remédio, disse:
— Meus filhos virão visitar-me esta noite. Se ficares aqui poderás vê-los.
Rob, apesar de saber-se perseguido, resolveu ficar, com a intuição de que iria conhecer homens da sua têmpera e de sentimentos afins. E foi o que se deu. Os moços vieram. Travaram conhecimento com o foragido e, reconhecendo-lhe a sinceridade e as qualidades, admitiram-no no bando. Um dêles disse:
— Nosso grupo tem falta dum bom chefe. Estávamos a estudar o meio de escolhê-lo. Agora foi resolvido que aquêle dentre nós que fôr à feira e conquistar o prêmio, êsse nos chefiará.
Rob pôs-se de pé.
— Ótimo! Parti de casa para disputar êsse concurso na feira de Nottingham — e estou certo de que saberei manter os guardas florestais e os homens dos xerifes de tôda cristandade a boa distância de mim.
Apesar de tão nôvo ainda, o brilho dos seus olhos e a energia de sua atitude disseram aos moços que seria aquêle o chefe ideal do bando.
— A Nottingham! A Nottingham, pois! exclamaram. Se vences o prêmio da seta de ouro, serás o chefe indisputado dos “fora-da-lei” da floresta de Sherwood.
Assentado isso, pôs-se Rob a pensar em como melhor se disfarçaria para aparecer na cidade sem receio de aprisionamento, pois com certeza os guardas já tinham pôsto sua cabeça a prêmio. O problema foi resolvido depressa.
Chegado à cidade, Rob varou a multidão, rumo à praça do mercado. Trombetas soavam. O povo se aglomerava em certo ponto para ouvir dum arauto a leitura da proclamação do xerife:
— “Um tal Roberto, sobrinho de Gamewell Hall, havendo matado o chefe dos guardas florestais do rei, fica pôsto de hoje em diante fora da lei. Em conseqüência, um prêmio de cem libras será pago a quem o prender, vivo ou morto.”
O arauto fêz novamente soar sua trombeta e o povo se espalhou alegremente, com o pensamento nas cem libras do prêmio. A proclamação foi afixada no lugar do costume, onde gente de nariz para o ar entrou a revezar-se na leitura. A morte do chefe dos guardas florestais constituía caso de sensação.
Mas povo é povo. O anseio pelas festas fêz que logo todos passassem aquilo para segunda plana, de modo que nas portas da cidade só ficaram os guardas florestais que, com o xerife, se empenhavam em apanhar o criminoso. O velho ódio dêsse xerife contra o pai de Robin voltava-se agora contra o filho.
O grande acontecimento do dia, porém, não foi êsse — foi o que sobreveio à tarde: concurso de tiro para a disputa da flecha de ouro. Compareceram vinte concorrentes, entre êles um que mais parecia mendigo, todo esfarrapado que estava, ar sorno, arranhões pelos braços e faces. Sôbre a cabeça tinha um velho capuz semelhante aos de certos monges. Foi manquitolando que tomou lugar entre os vinte atiradores, fazendo a assistência rir-se de sua triste figura. Como, entretanto, o concurso se abrira para quem quer que fôsse, não houve jeito de evitar que um mendigo nêle tomasse parte.
Lado a lado com Rob (pois era Rob o mendigo) vinha um alentado atirador de pele requeimada e um dos olhos oculto por uma faixa verde. A assistência também troçou dêsse estropiado concorrente. Sem dar atenção a isso, entrou o “cego” a experimentar a flexibilidade do arco e a remexer em seu carcás de flechas.
A multidão já era grande. Gente da cidade e das redondezas ali se reunira no antegôzo da disputa. Anfiteatro espaçoso. No camarote central figurava o xerife, pomposamente entrajado, com sua mulher coberta de jóias e sua filha muito empavonada, na certeza de que a flecha de ouro viria ter às suas mãos por gentil oferta do vencedor. Isto a faria a rainha da cidade.
À direita do camarote do xerife ficava o do gordo Bispo de Hereford; e à esquerda, um ocupado por formosa rapariga. Ao vê-la o coração de Rob pulsou violento. Marian! Havia sido enviada para a Côrte da Rainha Eleanor e agora se apresentava ali, com ar triste, ao lado de seu pai, o Conde de Huntington. Se Rob viera determinado a vencer, essa determinação dobrava agora de vigor. Um fluido desconhecido eletrizava seus músculos. Vinha do amor essa fôrça nova.
Uma trombeta soou. Fêz-se o silêncio na multidão. O arauto anunciou os têrmos da luta. Todos podiam concorrer, não havia restrição alguma, disse êle. O primeiro alvo ficava a trinta alnas de distância, e quem o atingisse no centro habilitava-se a atirar no segundo, colocado dez alnas mais longe. Vinha depois o terceiro alvo, mais afastado ainda. O vencedor de tôdas as provas receberia a flecha de ouro e também colocação entre os guardas florestais do rei, sendo coroado pela rainha do dia.
A trombeta ressoou de nôvo. Ia começar a disputa. Os arqueiros preparavam-se para atirar. Rob baixou os olhos para o seu arco, enquanto a multidão sorria e murmurava comentários a propósito da singularíssima figura. Quando o primeiro atirador ergueu a arma para o primeiro tiro, todos se calaram.
Só doze dos vinte concorrentes atingiram o centro do primeiro alvo. Rob, que fôra o sexto a atirar, recebeu a silenciosa aprovação do seu companheiro de ôlho vendado, que estava em sétimo lugar e que também acertou sua flecha no centro.
A multidão aplaudiu os doze vencedores, porque entre êles estavam os seus favoritos.
A trombeta deu sinal para a segunda prova.
Os três primeiros atiradores, três favoritos do povo, acertaram no centro do alvo e foram vivamente aplaudidos com palmas e gritaria. Era opinião geral que os vencedores do torneio estavam entre aquêles três. O quarto e o quinto fincaram suas flechas bem perto do centro. Chegou a vez de Rob. Ergueu o arco. Apontou. Desferiu — e sua flecha foi cravar-se no centro geométrico do alvo.
— O esfarrapado! O esfarrapado! gritou a multidão. Parece incrível, mas acertou!…
Na realidade o tiro de Rob fôra o melhor de todos. O do “cego” não ficou atrás, com a flecha fincada coladinha à de Rob. A multidão prorrompeu em berros de entusiasmo, porque tiros como aquêles nunca tinham sido observados em Nottingham.
Os restantes atiradores falharam e retiraram-se da arena de nariz caído, enquanto a trombeta anunciava a terceira prova, com o alvo a cinqüenta alnas de distância.
— Pela minha salvação, deste um tiro ótimo! — exclamou o esquisito companheiro de Rob, dirigindo-se a êle no intervalo para descanso. Concedesme que na prova imediata eu atire antes de ti?
— Impossível, respondeu o rapaz; mas és bom companheiro, e se me escapar a vitória tenho certeza de que te não escapará. Disse e olhou com desprêzo para os três arqueiros restantes, naquele momento rodeados de admiradores e de amigos do xerife, do bispo e do conde. Depois dirigiu os olhos para o camarote de Marian. Dois olhares se cruzaram. Ter-se-iam reconhecido?
O “cego” percebeu o jôgo e disse:
— Linda môça, hein? Muito mais digna de receber das mãos do vencedor a flecha de ouro do que a tal filha do xerife.
— Esperto és tu, meu “cego”, e gosto de saber que assim é — foi o comentário único de Rob.
Terminara o intervalo. Com mais cuidado do que nunca os arqueiros preparavam-se para a terceira prova. O alvo inteiro, lá longe, ficava do tamanho do centro do alvo número um. Os três primeiros atiradores deram excelentes tiros, sem que entretanto conseguissem tocar no centro.
Rob colocou-se em posição, mas com um pêso nalma. Uma nuvem ia passando pelo céu, que atrapalhava a luminosidade do disco; e para mal maior entrara a soprar uma brisa forte. Dois contratempos, dêsses que põem mêdo no coração dos atiradores. Seus olhos voltaram-se novamente para o camarote de Marian. O olhar trocado reassegurou-o imediatamente — neutralizou o contratempo da nuvem e da brisa. Rob sentiu que ela o reconhecera e estava a ordenar-lhe que vencesse. Erguendo a arma com serena firmeza, esperou um momentâneo estiar da brisa e atirou — e viu sua flecha cravar-se exatamente no centro geométrico do círculo visado.
— O esfarrapado! O esfarrapado acertou de nôvo! rompeu a multidão, assombrada e entusiasmada. Conseguirá o “cego” batê-lo?
O “cego”, último que restava, sorriu com superioridade e levantou o arco num gesto gracioso, sem se demorar em preparativos. Soltou a flecha e aconteceu o mesmo que na prova anterior: sua flecha foi cravar-se no centro, mas não bem no centro. A brisa desviara-a de meia polegada para a direita. Ao verificar isso, o “cego” sorriu e foi o primeiro a congratular-se com o vencedor.
— Havemos de nos medir um dia — disse êle — mas só entre nós dois. Na verdade não me interessei em vencer hoje, pois que o xerife para mim nada significa. Vai oferecer o prêmio à dama da tua escolha. — Disse e desapareceu na multidão, antes que Rob pudesse responder que sim, que estava disposto a medir-se com êle novamente, um dia.
O arauto gritou para Rob que fôsse receber do xerife o prêmio.
— És um tipo bem curioso, disse o xerife, a morder involuntàriamente os lábios; mas não há dúvida que atiras bem. Qual o teu nome?
Marian inclinara-se para não perder uma só palavra do diálogo.
— Chamo-me Rob, o Vagabundo, senhor xerife, foi a resposta do rapaz.
Marian sorriu satisfeita.
— Bem, Rob, o Vagabundo, tornou o xerife, creio que com um pouco mais de atenção à tua pele e às tuas roupas teríamos em ti um homem apresentável. Que achas de entrares para o meu serviço?
— Rob, o Vagabundo, sempre foi um homem livre, meu senhor, e livre deseja continuar a viver.
O xerife ensombreceu o rosto, mas soube conter-se já que sua filha iria receber a homenagem daquele homem arrogante.
— Rob, disse êle, aqui está a flecha de ouro que cabe como prêmio ao vencedor do dia. Devo declarar que a conquistaste brilhantemente, embora com surprêsa geral.
Nesse ponto o arauto fêz sinal para Rob, indicando a filha do xerife, a qual, sorridente, esperava o desfêcho da oferta. Mas Rob fêz que não percebeu e com a flecha em punho dirigiu-se para o camarote de Marian.
— Senhora — disse êle — rogo que aceiteis esta homenagem dum pobre vagabundo que devotará tôda a sua vida a bem servir-vos.
— Meus agradecimentos, Rob de Capuz (Hood), respondeu a môça com um imperceptível sinal dos olhos — e colocou nos cabelos a áurea flecha, enquanto o povo a aclamava: A Rainha! A Rainha!
Os olhos coléricos do xerife cravaram-se naquele arqueiro que recusara a sua oferta, recebera o prêmio sem uma só palavra de agradecimento e fizera tão pouco de sua filha. Quis dizer algo, mas a orgulhosa môça o deteve. O xerife então chamou um guarda dando-lhe ordem para trazer de ôlho o estranho mendigo. Precaução inútil. Aproveitando-se do tumulto, Rob esgueirara-se e desaparecera no meio da multidão.
Nesse mesmo dia um grupo de quarenta homens vestidos do pano verde de Lincoln se reunira na Floresta de Sherwood, em tôrno duma fogueira na qual assavam um veado real. Subitâneo rumor fê-los erguerem-se em guarda, de armas em punho.
— Amigo! — exclamou alguém. — Venho só, em procura dos filhos da viúva.
Imediatamente os três moços se adiantaram.
— É Rob, declararam êles ao reconhecerem quem os procurava. Bem-vindo sejas à Floresta de Sherwood, ó amigo Rob!
Todos os presentes saudaram o rapaz desconhecido e o rodearam para ouvir-lhe a história. Terminada que foi, um dos filhos da viúva tomou a palavra e disse:
— Camaradas, sabeis muito bem que o nosso bando há sofrido com a falta dum bom chefe — chefe por direito de nascimento, de bom sangue e de conquista. Mas êsse chefe acaba de aparecer na pessoa dêste jovem companheiro. Eu e meus irmãos dissemos-lhe que vós o escolheríeis como chefe, se êle humilhasse o xerife e conquistasse a flecha de ouro.
Todos assentiram e Will voltou-se para Rob.
— Que notícias trazes de Nottingham? indagou.
Rob sorriu.
— As seguintes: humilhei o xerife e conquistei a flecha de ouro. Mas tereis de confiar em minha palavra, porque a flecha dei-a de presente a uma formosa donzela.
E vendo que os homens vacilavam, na dúvida, prosseguiu:
— Pronto estou para aderir ao vosso bando como simples arqueiro, pois que entre tantos, vários deve haver com mais qualidades de chefe do que eu.
Um do bando se adiantou e falou; Rob imediatamente reconheceu nêle o cego do torneio. Era por disfarce; já não tinha a faixa verde no rosto.
— “Rob in the Hood”, pois foi assim que a formosa donzela te tratou — disse êle — aqui me apresento para testemunhar teu feito. De fato, envergonhaste e humilhaste o xerife, mais ainda do que eu poderia fazê-lo; e podemos renunciar à flecha de ouro, já que ela enfeita a coma de tão bela criatura. Quanto ao quase empate do nosso tiro, temos de decidir o ponto mais tarde. Desde já declaro, porém, que não terei outro chefe que não seja Robin Hood.
Então Will Stuteley contou aos demais os feitos de Robin e também se submeteu à sua chefia, jurando lealdade. Os filhos da viúva fizeram o mesmo e os demais os acompanharam, já que muito lhes mereciam aquêles três moços e também Will Stuteley, companheiro de lealdade já de muito comprovada. E saudaram-no a malgas espumejantes de cerveja, e aclamaram-no chefe sob o nome de Robin Hood — apelido tirado do tratamento que lhe dera Marian.
Robin foi instruído sôbre as leis do bando e as senhas. Também recebeu uma buzina, a cujo soar todos se reuniriam. E juraram que o dinheiro tomado aos ricos opressores, êles o repartiriam entre os pobres; e que não fariam mal às mulheres, fôssem donzelas, espôsas ou viúvas. Tudo juraram com terríveis juras, passando depois a festejar alegremente, sob a velha carvalheira, o grande acontecimento do dia.
E assim tornou-se Robin Hood o chefe dos bandoleiros.
Capítulo II
Durante todo o verão, Robin Hood e seus alegres companheiros erraram pela Floresta de Sherwood, com a fama dos seus feitos a espalhar-se longe pelo país. O xerife de Nottingham cada vez se enfurecia mais, porque tôdas as suas expedições contra os bandidos e tôdas as suas armadilhas degeneravam em novas decepções. No comêço a gente pobre muito se arreceou dêles; mas ao verificarem que os homens de Robin Hood não lhes causavam nenhum mal, limitando-se a combater e despojar seus opressores, passaram a respeitá-los, admirá-los e amá-los. Eram amigos. E dêsse modo o bando cresceu ràpidamente, com a adesão de mais uns quarenta amigos da liberdade.
Os dias sossegados que sobrevieram, porém, não iam com o espírito aventuresco de Robin. Certa manhã êle disse aos companheiros:
— A frescura picante dêste ar mexe-me com o sangue, meus amigos. Vou ver como vai o mundo lá pelos lados de Nottingham. Ficai na fímbria da floresta, atentos ao chamado da minha buzina.
Disse e partiu para a fímbria da floresta, onde entreparou por uns instantes, erecto, os cabelos em cachos flutuantes ao vento, a olhar com atenção para a estrada.
Era a estrada real que ia ter à cidade. Por ela se meteu Robin. Logo adiante tomou por atalho que ia ter a um riacho. Quando o alcançou, viu que as chuvas da estação o tinham transformado em torrente. Havia uma estreita ponte. Robin correu para ela; mas a meio caminho divisou uma criatura agigantada, aí de seis pés de altura, que vinha ao seu encontro. Trazia na mão um grosso cajado de carvalheira. Ambos apressaram o passo, cada qual pensando em cruzar a ponte antes do outro. No meio dela se chocaram e nenhum cedeu caminho.
— Quero passar! — gritou Robin em tom de chefe que em tôdas as situações manda.
O desconhecido sorriu. Perto dêle Robin era um menino.
— Alto lá com êsse tom! Só cedo passagem a homem mais forte que eu.
— Abre caminho, repito — insistiu Robin em tom colérico — ou mostrarei quem é o mais forte. Abre caminho se não quer que te lance nágua.
O desconhecido riu-se.
— Ho! ho! Por minha salvação, agora é que não cedo nada! Tenho passado a vida em procura de alguém mais forte, e viva Deus se o encontrei!
— Pois verás — replicou Robin. — Espera-me aqui até que eu corte um cajado como o que tens na mão.
Disse e voltou para a margem donde viera, e largando o arco e as flechas cortou um alentado rebento de carvalheira, reto, sem nós, aí duns seis pés de comprido. Mesmo assim era menor que o usado pelo oponente. Feito o que, voltou à ponte.
— Creio não ser preciso acentuar que para um arqueiro como eu, o mais simples, nesta situação, seria usar o arco. Mas gosto às vêzes de variar de música. — E regirando no ar o cajado: Preparate, pois, para a sinfonia que vou tocar no teclado das tuas costelas. Lá vai! Um, dois e…
— Três! gritou o gigante, arremetendo contra êle.
Mas Robin tinha agilidade de símio: desviouse a tempo dum golpe que se o apanha o teria abatido como a pancada na nuca que abate boi em matadouro. E mandou a réplica — uaque!